BRASÍLIA: Entre o Projeto e o Projétil!
Concebida como cidade-projeto, Brasília mudou muito em seus 60 anos de existência. O projeto original se converteu no projétil atual.[2] É este duplo (projeto-projétil) que me leva a ensaiar algumas observações sobre o futuro. E falar um pouco do passado e do presente.
Em uma definição já consagrada, Brasília foi um meio para muitos fins. Serviu aos interesses políticos de Juscelino Kubitscheck. Ajudou a inventar uma geopolítica econômica que fugiu da tradicional cabotagem na franja litorânea. Remodelou o modelo de corrupção pública e as relações da indústria da construção civil brasileira com o poder político. Deu cara de cidade aos debates arquitetônicos que se “desenvolveram” a partir de sua construção. Criou um novo espécime de “servidor” público, exilado no cerrado brasileiro. Imagem e imaginário de uma legião de candangos, transformou o pó vermelho em cinza e cor. Fez o céu em mar e o sonho em vida. Foi razão de filmes, discursos, narrativas e explicações. Enfim, uma esperança construída de concreto.
Da mesma forma, ao país descontínuo até o início dos anos 60 do século passado, sem ligações terrestres, as estradas se ofereceram, como a Belém-Brasília, que rasgou o país ao meio, como rota e marco da presença do “progresso”. Ao sertão se impôs a chance de integrar-se ao Brasil. E, por fim, como corolário da aventura, representou a consolidação de uma ideia de nação num país continental, a nossa atual desventura.
Há, é fato, inúmeras abordagens a respeito de Brasília. A mais primitiva é a de que Brasília é tão somente constituída do Plano Piloto, quando este é apenas o centro da cidade. Brasília, contudo, é mais que um centro. O centro e as antigas cidades-satélites formam o Aglomerado Urbano de Brasília ou do Distrito Federal. Ao se somar as cidades pertencentes ao estado de Goiás, falamos de uma Área Metropolitana de Brasília (AMB).[3]
Brasília é a Capital da República. É também um conceito arquitetônico/urbanístico. E é uma cidade viva onde homens e mulheres enfrentam o cotidiano a partir de muitos, distintos e complexos projetos. Concebida como símbolo do planejamento urbano, essa aura permanece até os dias correntes em muitas esquinas. A cidade, por essa visão, resultou de um modelo de planejamento urbano. Ademais, o projeto urbanístico, sem paralelo no Ocidente, esmerado nos aspectos arquitetônico e urbanístico, não teve ações complementares ao planejamento físico-estrutural no âmbito sócio-espacial. Com isto, faltou-lhe um elemento essencial para ser considerada cidade planejada. Ademais, para agravar o projeto de origem, o polinucleamento urbano fez a cidade passar de una, circunscrita ao Plano Piloto de Brasília, a uma constelação urbana – o aglomerado formado pelo centro e as demais cidades. A cidade polinucleada aconteceu ao arrepio do projeto fundador, que previa uma cidade compacta, delimitada ao Plano Piloto de Brasília, em uma base democratizante para o espaço.[4] Virou projétil!
Com a manutenção do plano piloto fechado, a democratização do espaço urbano se daria com maior socialização da cidade entre as classes sociais presentes, contrariando o normal desenvolvimento dos demais centros urbanos brasileiros onde o padrão é o do uso capitalista da terra e a formação de periferias pobres e favelas, com segregação sócioespacial. Por isso, a cidade utópica cedeu espaço à apropriação desigual do território. Como consequência, Brasília, somatório da constelação urbana, passou a se assemelhar às demais grandes cidades brasileiras. As regiões urbanas da AMB já possuem uma profunda diferenciação pelas desigualdades sócioeconômicas. Para complicar, as áreas não previstas no projeto original não contribuíram para uma maior qualidade do plano fundador.[5] No DF há ainda espaços agrários somando com a Brasília a totalidade do território. Esses espaços agrários, paulatinamente açambarcados para fins urbanos, são importantes dentre os desafios da cidade. No processo de urbanização, Brasília acabou se transformando no conjunto atual de núcleos disseminados no território, sem o controle do que se considerou planejamento urbano. Nesse território polinucleado, não háverá o mesmo futuro para o Plano Piloto de Brasília e as demais cidades.
O centro é um território elitizado, rígido, tombado e declarado “Patrimônio Cultural da Humanidade”. Nas demais cidades, há espaços flexíveis, que recebem a população excedente. O centro da cidade, sede dos governos distrital e federal, e seus anexos, Lago Sul, Lago Norte, Setor Octogonal, Setor Sudoeste, Setor Noroeste têm a marca de espaços privilegiados. Trata-se de um território bem dotado de infra-estrutura e qualidade ambiental, que demanda policiamento ostensivo em razão do incremento da violência, assaltos a residências, sequestros relâmpagos e agressões entre jovens. Pressiona-se por melhoria nas vias públicas, como pontes e viadutos, os quais deram ao Plano Piloto de Brasília a qualidade de vida urbana de primeiro mundo.
Nas outras faces da cidade, circundando o Plano Piloto e o território político do DF, as cidades possuem perspectivas menos promissoras, pois, apesar de muitas terem se constituído a partir de pranchetas, longe estão de incorporar o planejamento urbano do Plano Piloto de Brasília. É região de carências múltiplas em termos de qualidade de vida, possibilidades de emprego nas localidades de residência, infraestruturas como esgotamento pluvial, asfalto e iluminação pública, equipamento de lazer, hospitais e escolas locais com recursos humanos e tecnológicos, segurança pública, transporte público eficiente etc. Nas cidades de Goiás da AMB, o quadro é ainda mais grave, diante da explosão de crescimento nos últimos 30 anos e a forte pressão social e populacional.
As desigualdades entre estes campos de existência de Brasília criam pressão e desarticulam o projeto original em diversos projéteis que ainda não foram totalmente avaliados. As elites da cidade, as lideranças políticas e os grandes grupos econômicos não ajudam a mudar esta múltipla face da cidade. Somos muitos e muitas no mesmo espaço, mas cada um em seu retângulo.
É a partir desta realidade que, em Brasília, a configuração do espaço metropolitano é produto da relação estabelecida entre a prática espacial – por sua vez produto de ações advindas das concepções e idealizações espaciais e da imaginação geográfica de indivíduos e grupos – e as formas materiais existentes. Isso leva ao entendimento de que o espaço não foi produzido ao acaso, ainda que a espontaneidade da vida tenha um peso importante em sua produção, mas refere-se ao resultado de atos de construção de uma cidade.
A modernidade, uma era de direitos,[6] trouxe consigo uma concentração de ideias e concepções sobre a cidade. Dentre elas, a construção de um conceito de cidade como algo dentre os direitos de uma população, de um espaço geográfico e de um projeto civilizatório. Como direito à cidade, mais que o campo de uma legalidade prévia, criou-se a ideia de um campo urbanístico que deve ser parte do conflito permanente entre liberdades e lutas sociais.[7] A percepção é que a cidade é uma tentativa mais ou menos bem sucedida dos homens e das mulheres de (re)fazer o mundo em que se vive de acordo com seus desejos e necessidades.[8] Mas, se a cidade é o mundo que os homens e as mulheres criaram, é também o mundo onde eles estão condenados a viver a partir de uma modernidade. Mesmo os que estão no universo não-urbano (agrário, rural ou fora das cidades) são definidos exatamente em comparação com esta cidade moderna, diferente da cidade antiga e das experiências medievais. A cidade é, na modernidade, basicamente uma obra humana.[9]
Mas que direitos surgem na contramão da história senão uma necessidade humana radical?[10] Até onde poderá o Estado gerir um direito que esbarre na propriedade privada, pilar da sociedade capitalista? Qual é o direito à cidade no mundo capitalista neoliberal em tempos de crise global causada pelos episódios de uma pandemia?[11]
Em realidade, a perspectiva radical do direito à cidade no Brasil pode ser facilmente confundida com os direitos básicos, uma utopia diluída nas lutas por direitos elementares da população, como água, esgoto, transporte, escola. É um direito à cidade mínimo, como a cidadania brasileira: possível.[12]
Há uma mediação entre a gestão urbana do Estado e a sociedade que podemos utilizar para abordar a apropriação política do direito à cidade. Uma vez que o poder efetivo de organizar a vida urbana escapa da administração local (esta desempenha tão somente “um papel de agilizar e coordenar”) uma ampla coalizão de grupos, classes e forças, empreendida por diversos processos e agentes sociais, se constitui numa densidade social variada e conflituosa.[13] A essa ampla coalizão de forças que extrapola o governo local urbano denominou-se de campo urbanístico.[14] Este campo de forças pode ser encarado como a tentativa de abarcar a totalidade da luta política e cognitiva pelo controle do processo de produção do espaço, realizada por diversos agentes, grupos e instituições. Nesta trama que se desenrola pelo controle em torno do espaço urbano o que está em jogo é o dever-ser da metrópole, em outras palavras, quem e como arbitrará suas regras e quais relações decorrerão dela.
Outra denominação desta trama é conflito. Na atual etapa do processo urbano, o direito à cidade é essencialmente um direito ao conflito. Como em todas as fases anteriores, a expansão mais recente do processo de urbanização (especialmente em Brasília) trouxe consigo mudanças incríveis nos estilos de vida, com um misto de diversidade e complexidade, mas desta feita inédito. A questão é que as mudanças foram convertidas em mercadorias e mercados, cada vez mais disputados e conflituosos. A economia urbana contemporânea é estruturada, além da propriedade, de elementos como o consumismo, a indústria cultural e do conhecimento, e da expansão de uma ética e uma estética entre a luta e a pacificação. Nessas condições, os ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento se tornaram muito mais difíceis de sustentar uma única Brasília. Para exemplificar: a redistribuição privatizada por meio de atividades criminosas ameaça à segurança individual e pública a cada passo, gerando demanda social e popular por mais repressão policial.[15]
Até mesmo a ideia de que a cidade possa funcionar como um corpo político coletivo, um lugar dentro do qual e a partir do qual possam emanar movimentos sociais progressistas, parece implausível. Há, porém, especialmente nos últimos anos, a exsurgência de movimentos sociais tentando superar o isolamento e remodelar Brasília segundo uma imagem diferente daquela apresentada pelas incorporadoras imobiliárias, apoiadas pelos financistas, as grandes corporações e um aparato estatal local com mentalidade cada vez mais influenciada pelos negócios (públicos e privados).
Entre o planejamento original e a vida,[16] entre a cidade sonhada, desejada e sua concretude, há uma contradição permanente em Brasília – a lei, a sua (des)obediência e a superação das tensões por parte das pessoas, instituições, grupos e as conquistas de seus direitos (e deveres): conflito! Tais fenômenos são sempre perceptíveis. Em uns momentos mais evidentes. Noutros momentos estão submersos ou acomodados. Cabe-nos apreender. E, se possível, enfrentar. Na palavra de Leminski:
Em Brasília, admirei.
Não a Niemeyer lei,
a vida das pessoas
penetrando nos esquemas
como a tinta sangue
no mata borrão,
crescendo o vermelho gente,
entre pedra e pedra,
pela terra adentro.
Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estar
fora da quadra permitida.
Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.
Adeus, Cidade.
O erro, claro, não a lei.[17]
Brasília, além de Capital da República, tornou-se a partir dos anos 2000 uma das maiores metrópoles do País. Sua área metropolitana, com cerca de 3,6 milhões de habitantes, apresenta os problemas que afligem qualquer outra metrópole brasileira. Apesar de o Distrito Federal ter sido construído e estruturado com espaço bem definido de uso, inclusive com preocupações de proteção dos recursos hídricos, mananciais, parques, contemplando inclusive núcleos rurais, o que hoje se vê é uma completa desfiguração dessa concepção. Assim sendo, em que pese Brasília ser considerada uma cidade nova, acumulou nesses seus 60 anos problemas de uma velha metrópole, principalmente em função de desmandos governamentais de políticos distantes dos interesses públicos e demagogos que ajudaram a transformar a capital num local cheio de problemas sociais, econômicos e ambientais.
O inchamento da cidade, a falta de emprego, a grilagem de terras públicas, ocupações sem critério, bem como a formação de um cinturão de miséria na AMB, comprometem em muito a qualidade de vida na região. O mais preocupante ainda, mantido o curso das políticas que tradicionalmente vêm sendo implementadas em Brasília, é que indicadores econômicos e sociais dão conta de que a situação só tende a piorar.
Apesar da forte presença do Estado, a construção de uma gestão pública focada nos resultados para atender bem aos cidadãos e cidadãs ainda é um desafio em Brasília. O setor público carece de condução eficiente, austera, econômica e competente na execução das suas responsabilidades para atender aos programas, políticas e serviços necessários à população. O controle da corrupção e a defesa da eficácia dos serviços públicos, exceto em casos isolados, ainda é muito incipiente. Inexiste uma gestão democrática, ética e transparente, com participação popular e controle social.
É notável como a cidade tem recursos. Há uma arrecadação própria que une impostos estaduais e municipais num cofre só. O DF conta, também, com fundos federais por meio de um Fundo Constitucional que serve para custear a área de segurança pública e dar apoio as áreas de saúde e educação. O problema mesmo é incompetência e desvios ilegais que, infelizmente, não é exclusividade de um partido ou outro. A falta de uma classe política comprometida com os interesses públicos é um problema desesperador no DF.
A síntese do retrato da cidade (Brasília e sua AMB) do presente é crise e pressão. Crise da cidade, de seus serviços, de um modelo de sociedade, de sua economia, de suas instituições, de uma cultura, de seu meio ambiente, de sua juventude, de uma gente… Pressão por mudança, por esperança, por diálogos, por justiça e paz! É o enorme conjunto de pressões que transformou o projeto em projétil!
Diante deste quadro, como pensar o futuro? Como evitar que o projétil mantenha, numa superação histórica, algumas das linhas essenciais do projeto? E, quais são os critérios, para sinalizar estes caminhos. Da minha parte, o Norte que sugiro está no universo dos direitos humanos. Brasília, se realizar o seu futuro e o seu projeto, deve cuidar dos direitos humanos.
Neste campo de atuação, há a necessidade de políticas públicas para concretizar os direitos humanos. Como se sabe, os chamados direitos humanos de primeira geração, os direitos individuais, consistem em direitos de liberdade, isto é, direitos cujo exercício pelo cidadão requer que o Estado e os concidadãos se abstenham de turbar. Em outras palavras, o direito de expressão, de associação, de manifestação do pensamento, o direito ao devido processo, todos eles se realizariam pelo exercício da liberdade, requerendo, se assim se pode falar, garantias negativas, ou seja, a segurança de que nenhuma instituição ou indivíduo irá perturbar o seu gozo. Já os direitos sociais – típicos do século XX – são, se podemos assim dizer, direitos-meio, isso é, direitos cuja principal função é assegurar que toda pessoa tenha condições de gozar os direitos individuais de primeira geração. Como poderia, por exemplo, um analfabeto exercer plenamente o direito à livre manifestação do pensamento? Para que isso fosse possível é que se formulou e se positivou o direito à educação. Na mesma linha, como se pode dizer que um sem-teto, que mora debaixo da ponte, exerce o direito à intimidade (artigo 5°, X, da Constituição brasileira)? Isso será uma ficção enquanto não lhe for assegurado o direito à moradia, hoje constante do rol de direitos sociais do artigo 6° da Constituição.
Os direitos sociais, mais precisamente os direitos econômicos, sociais e culturais, foram formulados para garantir o exercício em sua plenitude dos direitos de primeira geração. Da mesma forma, os direitos de terceira geração, como o direito ao meio-ambiente equilibrado, à biodiversidade e o direito ao desenvolvimento, foram concebidos para garantia mais extensa dos direitos individuais, também em relação aos cidadãos ainda não nascidos, envolvendo cada indivíduo na perspectiva temporal da humanidade e, por isso mesmo, intitulados como direitos transgeracionais. O conteúdo jurídico da dignidade humana vai, dessa forma, se ampliando na medida em que novos direitos vão sendo reconhecidos e agregados ao rol dos direitos fundamentais.
A fruição dos direitos humanos é uma questão complexa, que demanda um aparato de garantias e medidas concretas do Estado e da sociedade de forma a disciplinar o processo social criando formas que neutralizem as forças desagregadoras e excludentes da economia e possam promover o desenvolvimento da pessoa humana numa realidade democrática. Temos concretamente urgência de democracia numa época em que esta questão se desdobra em dois polos: um ideal e um histórico.[18] A configuração da vida política a partir da liberdade considera que todo ser pessoal é livre e, portanto, sujeito da efetivação de sua própria vida individual e social, de tal modo que todos são portadores do direito de assumir a configuração da vida coletiva enquanto busca de efetivação dos direitos e deveres de todos.[19] A consequência disso é que uma sociedade pode ser dita democrática quando for igualitária, capaz de reconhecer a alteridade[20] e participativa, onde todos constituem o sujeito de sua própria construção como sociedade.
Recriar as condições mínimas de um projeto para Brasília é dar significado a este conjunto de direitos, assumidos como deveres de uma sociedade que deseja que o futuro comece agora. Sem este cuidado, sem esta retomada, qualquer futuro para a cidade, Brasília (projeto e projétil) tornaremos a um quadro de impotência. Sem esta justa potência, pelos direitos e pelas relações humanas, teremos a prepotência de continuar no mesmo lugar: crise e pressão. É momento, nestes próximos 60 anos, de propor e criar a melhor e mais justa solução.
INFORMAÇÃO É NADA SEM INTELIGÊNCIA!
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NOTAS
[1] Melillo Dinis do Nascimento é advogado e analista político em Brasília-DF.
[2] Concebo aqui a ideia de que o projétil é qualquer sólido pesado que se move no espaço, abandonado a si mesmo depois de haver recebido um impulso inicial. Esta expressão tem inspiração no livro “A Sociedade do Cansaço”, do filósofo Byung-Chul Han, que traz esta metáfora certeira do projétil para ilustrar o que acontece conosco, sujeitos de desempenho, e oferece uma reflexão imperdível: “A sociedade de desempenho é uma sociedade de exploração. O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente (burnout). (…) O projeto se mostra como um projétil, que o sujeito de desempenho direciona contra si mesmo.” Cf. HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 101.
[3] A influência e a funcionalidade de Brasília nas cidades dos Estados de Goiás e Minas Gerais são incontestáveis para além dos limites políticos do Distrito Federal (DF). A AMB é constituída pelo Distrito Federal e municípios de Goiás. Ocupa uma região de 55.434,99 quilômetros quadrados e sua população é de aproximadamente 3,531 milhões de habitantes (Dados de 2010, conforme IBGE). No Distrito Federal estão 2.881.854 pessoas, conforme a PDAD – Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (2018), disponível em http://brasiliametropolitana.codeplan.df.gov.br/#/comparativo. Acesso em 2 abr. 2020. No centro do território está a área mais densa, composta pelo Distrito Federal, detentor de 69% da população e seus municípios limítrofes. Há uma grande área conurbada na direção sul BR-040, incluindo-se nessa região os municípios de Valparaíso de Goiás, Cidade Ocidental, Novo Gama e Luziânia que representam 12,3% da população da região. Outras áreas concentradas são: Águas Lindas de Goiás (margens da BR-070), Formosa (margens da BR-020), Planaltina (BR-010), Santo Antônio do Descoberto (BR-060). Há outras expressões para descrever esta geografia: “entorno”, “baixada brasiliense” ou “RIDE” (Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno), denominação criada pela Lei Complementar nº 94/98. Como quer que se decida denominar esta área metropolitana, o fato é que são regiões e realidades intrínseca e imbricadamente articuladas.
[4] Ao aprofundar essas questões Aldo Paviani, professor emérito da Universidade de Brasília, consolidou-se como uma referência para mim. Conhecido por sua simpatia e amor por Brasília, indicou o material da CODEPLAN – Companhia de Planejamento do Distrito Federal (onde é assessor), fundamental para a etapa seguinte do texto (item 2). Desde sua Tese de Livre Docência (Mobilidade Intra-Urbana e Organização Espacial: o Caso de Brasília) de 1976, Paviani vem sendo um observador privilegiado e analista percuciente da realidade de Brasília. Aqui foram utilizadas as suas reflexões: PAVIANI, Aldo “Brasília: que futuro?”, Correio Braziliense, Caderno Especial Brasília 44 anos, Brasília, 21 abr. 2004, p. 12 e PAVIANI, Aldo. (Org.) Brasília, ideologia e realidade. São Paulo: Ed. Projeto, 1985. Ele tem outras publicações editadas pelo IAB/DF. Outros autores influenciaram esta questão. Brasilmar Nunes, por exemplo, destaca que “Brasília é mais um plano urbanístico do que propriamente um plano urbano”, pois “as interações humanas são aqui desproporcionalmente inferiores ao volume demográfico, fenômeno que decorre justamente da concepção urbanística adotada”. NUNES, Brasilmar (org). Brasília: a construção do cotidiano. Brasília, Paralelo15, 1997 e BUARQUE, Cristovam. Admirável mundo atual. Dicionário pessoal dos horrores e esperanças do mundo globalizado. São Paulo, Geração Editorial, 2001. Buarque e Paviani também acentuam o distanciamento ocorrido entre sua inauguração e sua realização, entre o pensado e o realizado, isto é, entre a imaginada cidade utópica, dita socialista e que se formou sob o capitalismo brasileiro, com apartação social. Aqui outros autores são necessários mas não é o objetivo desta provocação enveredar nos múltiplos aspectos teóricos.
[5] Para lembrar Millôr Fernandes, em sua conhecida crônica “O Brasil (Descrição física e política)”: Há muitas diferenças entre as várias regiões geográficas (do país), mas a mais importante é a principal.
[6] Na célebre expressão de BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[7] A expressão direito à cidade ganhou conceito com Lefebvre, na obra-manifesto Le droit à la ville, publicado poucos meses antes de maio de 1968. Ver LEFÉBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2004. Lefebvre repudiava a posição determinista e fixista do urbanismo modernista. Os problemas da sociedade não podem ser todos reduzidos a questões espaciais, muito menos à prancheta de um arquiteto. A crítica ao urbanismo positivista (com todos os riscos de um termo muito mal compreendido), porém, não se reduz à questão de que ignora os limites da capacidade de o planejamento racionalista abstrato transformar a realidade. Mais do que apontar a falência do resultado, Lefebvre contestava o caráter alienante da própria pretensão de tornar os problemas urbanos uma questão meramente administrativa, técnica, científica, pois ela mantinha um aspecto fundamental da alienação dos cidadãos: o fato de serem mais objetos do que sujeitos do espaço social, fruto de relações econômicas de dominação e de políticas urbanísticas por meio das quais o Estado ordena e controla a população. Em oposição a essa perspectiva administrativista, Lefebvre politizou a produção social do espaço: assumiu a ótica dos cidadãos (e não a da administração), assentando o direito à cidade na sua luta pelo direito de criação e plena fruição do espaço social. Avançou numa concepção de cidadania que foi além do direito de voto e expressão verbal: tratava-se de uma forma de democracia pelo controle das pessoas sobre a forma de habitar a cidade, produzida como obra humana coletiva em que cada indivíduo e comunidade tem espaço para manifestar sua diferença.
[8] Para ler a questão da cidade como ponto articulador de uma sociologia urbana ver PARK, Robert E., Ernest E., BURGESS & Roderick D. McKENZIE (& Louis WIRTH) – The City, The University of Chicago Press, Chicago, 1925. Textos mais recentes sobre a cidade redefinem a importância da urbanização: CHAKRABARTI, Vishaan, A Country of Cities. New York, Metropolis Books, 2012, 252 p.; KATZ, Bruce e BRADLEY, Jennifer. The Metropolitan Revolution, New York, Brookings Institution Press, 2012, 189 p.; GLAESER, Edward. The Triumph of the City, London, Penguin, 2011, 338 p.; FLORIDA, Richard. The Rise of the Creative Class. San Francisco, Basic Books, 2010, 210 p.
[9] Claro que a cidade antiga e medieval era fruto do engenho humano. A diferença com a modernidade é que o ser humano antigo e medieval não possuía a noção de sujeito livre e, portanto, autor de sua realidade. Na modernidade, o ser humano consiste em ser livre e o caminho para chegar aí é cada individualidade negar-se como realidade isolada e construir um mundo que é efetivador da liberdade. Ver: OLIVEIRA, Manfredo A. de. Desafios éticos da Globalização. In: Consecratio Mundi. Festischrift em homenagem a Urbano Zilles. Ed. por ULMANN, R.A., Porto Alegre, Edipucrs, 1998, p. 553.
[10] CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Direito à Cidade e a Construção da Metageografia, Revista Cidades, v.2 nº. 4, 2005, p. 221-247.
[11] RODRIGUES, Arlete Moysés. Direito à Cidade e o Estatuto da Cidade. In Revista Cidades, v.2 nº. 3, 2005, p. 89-110.
[12] CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano. Novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004, p. 38 e ss.
[13] HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio, In: Cidades: Estratégias Gerenciais. Espaço & Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos – Ano XVI – 1996, nº. 39, p. 52.
[14] MARTINS, Jeová Dias. As regras da metrópole. Campo urbanístico e ordem social na região metropolitana de São Paulo. Tese (Doutorado) Brasília: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília, 2006. Especialmente o capítulo da Teoria do Campo Urbanístico.
[15] Basta gastar duas horas dedicadas a um desses programas de violência/repressão policial presentes na grade das programações de rádio e televisão mais populares em Brasília. Desde já advertimos: investir mais que duas horas pode fazer mal à saúde!
[16] Nicholas BEHR contrapõe Brasília a uma Braxília: “(…) Braxília não, Braxília é sonho. A cidade que cada um de nós pode inventar e construir, sem tijolos e sem dor. A utopia dentro da utopia, como se isso fosse possível. A outra Brasília, a sua, a nossa, a velha, a real, já foi sonho sim. Já foi. Hoje esta cidade são linhas retas que substituímos por linhas sinuosas, barrocas. (…)”. Em BEHR, Nicholas, Vinde a Mim as Palavrinhas, Brasília: LGE Editora, 2005, p. 41.
[17] LEMINSKI, Paulo, Ruinogramas, mimeo., 1980.
[18] A conjugação dos dois pólos (ideal-normativo e empírico-histórico) no nosso contexto epocal é bem explorada por LIMA VAZ, H. Cl. de. Democracia e Sociedade. In: TOLEDO, Cl. MOREIRA, L. (orgs.). Ética e Direito. São Paulo: Landy/Loyola, 2002, p. 344.
[19] Cf. SOUZA, H.J. de. Construir a utopia. Proposta de democracia. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 44.
[20] Cf. TOURAINE, A. O que é a democracia. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 165: “Da mesma forma que a liberdade dos antigos está baseada na igualdade dos cidadãos, assim também a liberdade dos modernos está baseada na diversidade social e cultural dos membros da sociedade nacional ou local. Atualmente, a democracia é o meio político de salvaguardar essa diversidade, fazer viver indivíduos e grupos cada vez mais diferentes uns dos outros em uma sociedade que também deve funcionar como uma unidade”. Há um debate que não cabe em uma provocação como esta, mas que merece um aprofundamento posterior. O tema clássico da diferenciação social e das desigualdades econômicas refinou-se nas últimas décadas de forma a incorporar reflexões sobre identidades nacionais, religiosas, étnico-raciais e de gênero. Ser diferente tem seus aspectos positivos. Já as desigualdades são sempre discriminatórias. Discutir esta questão conduz à compreensão dos mecanismos sociais de criação e reprodução da exploração, marginalização e subalternização de grupos sociais específicos. As desigualdades sociais em seu viés socioeconômico refletem sobre outras formas de subalternização de grupos e culturas: a reprodução das desigualdades por meio da indústria cultural; relações étnico-raciais contemporâneas na sociedade brasileira; relações de gênero e reprodução social; processos sociais de subalternização e controle de identidades sociais estigmatizadas; a diversificação do mercado religioso no Brasil.
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