Os dez anos da Lei da Ficha Limpa
Recordo que minha posse, em fevereiro de 2010, como presidente do Conselho Federal da OAB aconteceu em um momento extremamente difícil da vida nacional. Um governador, políticos e assessores foram filmados recebendo dinheiro oriundo de propinas. As imagens continham cenas revoltantes, pois os valores eram guardados em meias, em cuecas, em bolsas. Chegaram ao extremo da “falta de vergonha na cara” (usando a expressão de Capistrano de Abreu) de orar para agradecer pela propina recebida.
Era a impunidade presente de forma aberta, a desacreditar o sistema e as instituições. Mais uma vez, a OAB foi às ruas, ao parlamento, ao Poder Judiciário para combater aquele sorriso sarcástico estampado na cara do criminoso confiante de que nada iria lhe acontecer, pois do sarcasmo do patife resultava o drama do sem-teto, do sem-terra, do sem-justiça; o drama da violência, do drogado, da criança entregue às ruas, da prostituição e da miséria.
Compreendíamos que não era suficiente termos eleições a cada dois anos, pois por trás dos festejos de cada nova eleição escondia-se uma crise de credibilidade na base da democracia representativa, resultante de uma série de fatores que levaram, por exemplo, milhões de cidadãos a se mobilizar exigindo uma legislação específica para retirar do cenário político candidatos com fichas sujas.
A partir de uma proposta do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), iniciou-se um amplo movimento de defesa da ética pública na sociedade brasileira, destinado à apresentação de um projeto de iniciativa popular denominado Lei da Ficha Limpa, que foi levado ao Congresso Nacional com quase cinco milhões de assinaturas. Depois de um início não muito promissor, com a força da imprensa, da OAB e de vários segmentos sociais, o projeto andou e acabou sendo aprovado pelo Legislativo, transformando-se na Lei Complementar 135/2010.
Em síntese, a lei ampliou o prazo das inelegibilidades para oito anos e vedou a candidatura de quem fora condenado por órgão judiciário colegiado em crimes de alto potencial lesivo. Deu maior efetividade à ação de investigação eleitoral pelo uso indevido dos meios de comunicação, abuso de poder político e econômico e criou a inelegibilidade para o candidato condenado por captação ilícita de sufrágio e por conduta vedada aos agentes públicos. Quanto ao abuso do poder, a lei expressou que seria suficiente a gravidade das circunstâncias em que o ato fora praticado para influir nos resultados das eleições, não mais a potencialidade.
A Lei da Ficha Limpa, ao proibir a candidatura de pessoas condenadas por atos de improbidade administrativa ou crimes contra a administração pública, hediondos e eleitorais, entre outros, jogou para os partidos políticos, essenciais à democracia e sem os quais não se pode ter eleições, por serem a célula que concentra os candidatos, toda a responsabilidade na seleção de quadros qualificados para representar o povo brasileiro.
Ter ficha limpa para ser candidato passou a ser uma realidade, mas era preciso vencer as resistências ao conceito que a lei procurava defender: moralidade e probidade administrativa; zelo com a coisa e com o dinheiro público. A OAB, em nosso mandato, ingressou com uma ação direta de constitucionalidade no STF (ADC 30) para ver a lei reconhecida e, a partir daí, ser aplicada em todo o país. A OAB venceu a batalha jurídica, mas devemos reconhecer: se tamanho esforço foi necessário, então algo estava errado.
Ao deslocar o tema das ruas, do parlamento, para o Judiciário, partimos da compreensão de que a diminuição das desigualdades sociais passava não só por políticas públicas inclusivas, mas igualmente pelo fortalecimento da Justiça como o último reduto em que os cidadãos, sobretudo os mais pobres, podem buscar a reparação dos seus direitos.
Entendíamos que, diante das resistências de parte expressiva da classe política, a chave para abrir a porta da verdadeira reforma política que o país reclamava (e ainda reclama e necessita) seria pelo Poder Judiciário.
É bem verdade que vimos, nesses dez anos, a transferência de candidaturas para familiares, como se fosse uma capitania hereditária, numa tentativa de burlar o rigor da norma, o que, aqui e ali, acaba dando certo. No entanto, não será a Lei da Ficha Limpa que corrigirá esses desvios, e, sim, a educação do povo.
E o desafio reside, justamente, em como envolver a sociedade — a sociedade em sentido lato, desde as suas representações legítimas até o anônimo cidadão — num projeto de reforma política, num projeto de nação que dê maior credibilidade a um instituto cuja história se perde no tempo e não temos outro melhor para substituí-lo: o voto.
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